terça-feira, 4 de outubro de 2016

A infelicidade tolerada


O despertador toca. Sempre às 7.30. Se a hora ainda não mudou, está de noite. Refila. De noite é tudo muito pior. Toma duche, penteia-se, olha-se ao espelho uma última vez, está apresentável, ninguém descofia, sai porta fora. O trabalho espera-a. O mesmo. Muda uma virgula, um apontamento, já faz aquilo mesmo que se esqueça. Aborrece-se. Ao menos tem um trabalho, pensa ela. 
Acaba de justificar as 8 horas de salário. Miseráveis, mas dá para o gasto. Pega no carro, conduz alheada até casa, põe a chave à porta. No caminho pensou no jantar. Fez planos de ir ao ginásio, lembrou-se que se calhar não ia ter tempo. Vou antes ler um livro para um jardim. Que livro? Há anos que não lia, esquecera-se de como soavam as palavras, de que livros gostava. Abandonou estas ideias - que disparate!
Entrou em casa, dedicou-se ao mesmo. Faz as almôndegas para o marido esfomeado. Hoje esmeraste-te! Obrigada! Responde ao elogio que, de tão raro, valeu-lhe por tudo. Limpa a cozinha, varre o chão, apaga a luz. Faz zapping, contesta a programação, nada a agrada. O que a agradara da última vez que se agradara?
Pega no telefone. Liga a alguém, Preciso de saber novidades, de conversar sobre coisas,  partilhar o dia-a-dia, confessar-me... Exorcizar-me... Sair desta gaiola.
O telefone do outro lado toca, atendem. Ela sorri! Uma voz amiga, familiar, intima... Que alivio, que prazer!
Abre a boca, começa a verbalizar. Detém-se. Foca-se no trabalho que dá muito trabalho, na rotina que é sempre a mesma, no casamento que é mesmo assim. Convence-se um pouco mais. Redime-se um pouco mais. Resigna-se um pouco mais. 
Ainda não foi desta que lhe descobriram a verdadeira infelicidade. Aquela que só para ela será suportável, porque é dela. Ainda não a viu espelhada nos olhos dos outros quando a olham. E assim, será sempre aquela que se conhece, que se sabe e que se tolera. Porque mais ninguém a viu...

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